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O psicoterapeuta é um cientista?


Essa é uma pergunta controversa dentro da psicologia e da academia. O curso de psicologia engloba o estudo de várias psicologias, pois existem diversas formas de abordar o objeto de estudo da psicologia. Os psicólogos se referem, entre si, a estas diferentes formas de abordar, como orientação teórica ou abordagem psicológica (dentre diversas outras derivações). Toda psicoterapia deve ser embasada em uma abordagem psicológica, pois é assim que o psicoterapeuta orienta a sua prática clínica.

Mas afinal, o que é uma abordagem psicológica?

Existem várias, o leitor já deve ter ouvido falar de algumas: Psicanálise, Comportamental, Psicodrama, Humanista, Cognitivo-Comportamental, Sistêmica, Existencial, Gestalt-terapia (pela qual me oriento), dentre outras e subcategorias destas. Cada uma dessas vê o homem de uma forma diferente (fundamentação antropológica), portanto, ao delimitar a visão, delimita-se também a forma sobre como abordar o objeto no estudo científico e as intervenções e práticas provenientes. Além do mais, cada abordagem psicológica fundamenta-se em eixos epistemológicos e filosóficos distintos, que tornam mais evidentes as tênues linhas entre uma abordagem e outra.

Portanto, respondendo parcialmente a pergunta do título: o bom psicólogo articula conhecimentos filosóficos, antropológicos, teóricos e técnicos, que conjugados de forma reflexiva e ética permeiam a prática do bom psicólogo como científica. E não é qualquer prática científica, é bastante exuberante e complexa.

Por que, de forma geral, os psicólogos não são associados a esta figura científica?

Vários fatores podem estar contribuindo para este fenômeno culturalmente errático.
1. A associação do científico somente às ciências “duras”, como a física ou medicina;
2. O não conhecimento geral de filosofias da ciência distintas, dentre elas a Fenomenologia, que embasa diversas abordagens psicológicas;
3. O TRABALHO DA PSICOTERAPIA TAMBÉM SER UMA ARTE!




Estes três fatores são os principais que consigo identificar para não fornecer à psicoterapia uma imagem científica. Ressalto, estou me referindo às boas psicoterapias, que são oferecidas por profissionais íntegros e éticos. Preocupados em manterem-se atualizados, reflexivos sobre sua prática e mantêm o profissionalismo adequado.

Os itens 1, 2 e 3 estão intrinsecamente relacionados. Começarei pelo 2, pois considero antecedente a 1, mas não tão evidentemente marcante. No início do século XX, começou um movimento filosófico liderado pelas obras do filósofo e matemático alemão, Edmund Husserl, chamado fenomenologia. Este movimento ficou conhecido, grosso modo, por buscar a essência do conhecimento sobre as coisas da vida, e criticava reduções e objetivação do conhecimento, imposto pelo Positivismo. Além do mais esse movimento era contrário, pasmem, ao psicologismo! Isso mesmo, a filosofia da ciência que veio a embasar diversas abordagens psicológicas presentes hoje (também a Gestalt-terapia) combatia o psicologismo das formas de adquirir conhecimento na ciência.

Por que combater o psicologismo não é incoerente dentro da psicologia, e sim necessário à ciência psicológica? Embarcamos aqui em uma discussão que revela a primazia da conduta psicoterapêutica. E desvela a importância da fenomenologia na prática psicoterapêutica, e também na ética do psicólogo. A fenomenologia convida o psicólogo a investigar as essências dos fenômenos psicológicos, suspendendo qualquer conceito adquirido a priori, não permitindo que seus pré-julgamentos e preconceitos interfiram na orientação da prática estabelecida ali com o cliente. Cada cliente é considerado, portanto como inédito, não sendo igual a nenhum outro, com toda a consideração de sua própria humanidade e histórias genuínas. Essa é a visão do psicoterapeuta. Por exemplo, cada pessoa tem sua crença espiritual/religiosa; a fenomenologia da psicoterapia proporciona abertura para que o trabalho psicoterápico possa ser construído, independente de qualquer crença. Assim, a pessoa tem liberdade para existir e crescer sobre qualquer circunstância espiritual possível. Mais sobre este tema em breve aqui no Blog Janela Interna.

Se tudo é novo, onde está a ciência da profissão na psicoterapia?

Vejamos bem: o psicoterapeuta articula em sua prática três dimensões: Fundamento Filosófico e Antropológico – que neste caso, é a fenomenologia como método de investigação científico--, o que é Teoria, e o que é Método e Técnica. A prática é um amalgama responsavelmente elaborado pelo profissional, dessas três dimensões, que formam o que chamamos de coerência epistemológica. A Teoria articulada com o que é investigado fenomenologicamente desvela os caminhos a serem seguidos dentro da psicoterapia, em benefício do cliente.

Como se dá a relação entre ciência e esta articulação entre Filosofia, Teoria e Técnica?

Aí está o núcleo gerador de controvérsia da pergunta “O psicoterapeuta é um cientista?”. Na verdade, é científico reconhecer que existem dimensões não passíveis de investigação pelo que temos de possibilidade da ciência hoje. Portanto, em algum momento em qualquer prática, a ciência chega a seu limite. E o que vem depois?

Existem abordagens psicológicas não embasadas pela Fenomenologia, por exemplo, Comportamental e Cognitivo-Comportamental, que se aproximam mais de ciências “duras”, pois são embasadas por outras filosofias da ciência convergentes com epistemologias destas. Portanto, sendo, supostamente menos propensas se depararem com o limite científico nas práticas. Entretanto, em detrimento disso, compelem os profissionais a desconsiderarem em maior grau a influência de conceitos apriorísticos na relação terapêutica, tendendo a reduzir os fenômenos da totalidade humana a conceitos e postulados utilitaristas, assim como critica a fenomenologia.

Isto se deve em grande parte ao cunho cultural do que vem após o limite científico. Que é a Arte!

Fazer Psicoterapia também é arte, pois cada pessoa é única, cada situação é inédita, e cada pessoa merece que seu terapeuta esteja presente por inteiro, e não perambulando por métodos dentro de sua cabeça o tempo todo, tentando encaixar a pessoa em diagnóstico que vai dizer muito mais para uma convenção, do que fazer serviço ao próprio cliente. Defendo aqui que o psicoterapeuta deve estar aberto ao ineditismo de cada relação que estabelece e, fundamentado em sua abordagem psicológica, prestar o serviço que seu cliente merece.

É possível articular ciência e arte, em uma totalidade. Da mesma forma como toda pessoa é uma totalidade que não deve ser fragmentada ou reduzida.

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